segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Monólogo ao pé do ouvido ou a vereadora que empresta cartões da Marisa ou as contas que só vencem em novembro ou como eu só queria dormir

Quando eu chego às nove da manhã no jornal e vou embora com o dia já escuro só consigo pensar em duas coisas: ainda no trabalho e no caminho apressado e esquisito, em cerveja. Quando chego na parada de ônibus e respiro, só quero me teletransportar pra debaixo do meu chuveiro quente e depois desmaiar.

Perdi o ônibus e enquanto reclamava comigo mesma, uma mulher que tava do meu lado me falou qualquer coisa. Eu só ri. Foi quando entendi que ela me perguntava se a loja de calçados atrás de nós fazia cartão de crédito. Disse que achava que não. ela começou a conversar. perguntou se eu tinha cartão, se meu nome já esteve sujo e que o dela esteve por 6 anos. A hora avançava e ela perdeu a aula.

- onde você estuda?
- eu não moro por aqui, moro na Roda de Fogo.
- ah, então você mora perto de mim. Moro no Engenho do Meio.

Quando o ônibus veio, tive a impressão dela ter dito que ia pegar o mesmo que eu e que ela era analfabeta - porque tinha me perguntado o nome da loja antes. Avisei e ela subiu logo atrás de mim.

Torci pra primeira cadeira depois da roleta estar vazia. Aquela que é só uma. Que você fica só, sem conversar, sem ninguém encostar em você. O único cara que subiu no ônibus antes de mim também queria ficar só e sentou nessa cadeira.

Sentei mais pra trás e ela do meu lado. Liguei pra minha mãe pra ver se minha vizinha de ônibus esquecia da nossa conversa. Eu queria dormir. Assim que desliguei, ela disse:

- tenho um celular desse com dois chips.

me contou todas as operadores de telefonia da casa dela. da filha, da neta. tirou o tênis que estava nos pés e cujas prestações ela só começará a pagar em novembro. pegou a havaiana nova, cheirou e colocou nos pés.

- que cheirinho de chiclete. tudo que é novo tem cheiro, né?

eu só ria e colocava o fone até ela falar de novo e eu tirar.

- vou descer no Engenho do Meio. vou entregar o cartão da minha amiga, da vereadora, ela é mulher do vereador.
- ela te emprestou o cartão, foi?
- foi. e ele tá levando todo mundo pra tirar título de graça.
- mas tirar título é de graça.
- não! tirar CERTIDÃO. certidão não é de graça, é R$50.
(eu, que nunca tirei uma certidão de nascimento, me calei...)
- mas ele não pode fazer isso, sabia?, continuei.
- não é ele. é ELA. ela tá AJUDANDO as pessoas.

eu entendi que não ia adiantar argumentar.
- quem é o marido dela?
ela me deu um santinho.
- ele é bonito, né? engraçadinho..
ri e disse que não achava.
- é sim, gordinho e ele tá rindo.
- mas todo político tira foto rindo.
ela concordou e me deu mais um santinho pra eu dar pra minha mãe.

perguntei o nome dela. depois de uns dois minutos, ela perguntou o meu. eu, com fone, só ri. ela repetiu:
- qual o seu nome?
- alana.
- prazer, alana, muito prazer em te conhecer. eu gosto de conversar com as pessoas, o caminho passa mais rápido, a gente fica menos preocupado.

eu ri.
encostei a cabeça na janela. eu só queria dormir. coloquei o fone. fechei os olhos. olhei pro lado discretamente e ela também tava com os olhos fechados, "dormindo". dormindo comigo, do meu lado.
bem na hora, Tulipa começou a gritar no meu ouvido, Criolo a gemer e saí dali por uns 4 minutos. chegou minha hora de descer, dei tchau.
- até outro dia.
- tchau, até.

confesso que fiquei decepcionada com a despedida até que ela disparou:
- meu telefone é...
abri o sorriso e respondi:
- certo.


não gravei o telefone e até o nome dela eu esqueci. A essa hora ela deve ter devolvido o cartão e está em casa mostrando a blusa nova que é a cara da neta. Amanhã quem vai pegar o cartão e estourar as contas é a filha de 18 anos. As primeiras faturas vencem em novembro e novembro já é amanhã, um pulo pro natal.

Só me lembro de que o nome dela começa com Val.
Que eu só queria dormir e que ela só queria conversar.