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A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do meu Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer.
(...)
Fomos, pela cidade, ele um pouco à frente, com seu andar empinado mas tropeçado de salamaleques. Sempre foi assim: ao mínimo pretexto, Abstinêncio se dobrava, fazendo vénia no torto e no direito. Não é respeito, explicava ele. É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença.
(...)
De novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece mais um modo de escutar. Que seria que ela retirava de meu parente? Talvez sua definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos. Abstinêncio se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mão sobre a testa, cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.
- Esse homem vai carregado de sofrimento.
- Como sabe?
- Não vê que só o pé esquerdo é que posa com vontade? Aquilo é peso no coração.
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mia couto
- Como sabe?
- Não vê que só o pé esquerdo é que posa com vontade? Aquilo é peso no coração.
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mia couto
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