terça-feira, 19 de novembro de 2013

Tu não te moves de ti

Rute, hoje vou te mostrar meu poema, antes do primeiro relatório
Rute, é um poema pequenino, falta a última palavra aqui, e o relatório está pronto
Rute, é sobre o instante, sabe? essa dificuldade de 
Claro, Rute, o relatório está perfeito, mas é sobre o poema que
Do verso-vida dentro de mim que agora me enche o peito, do meu verso reprimido, de mim Tadeu há tantos anos sonâmbulo deitando-me e levantando-me para te dar o que tu ainda chama de delicadeza, delicadeza-prato-de prata sob outros pratos - delicadeza de louça portuguesa, delicadeza-ânforas aladas, delicadeza moldura cinzeiros caixas, deitando-me e levantando-me para que a casa conserve a mesma atmosfera de dentro dos cofres, silenciosa e severa e em cada canto uma delicadeza feita do meu sangue, meu verso esse sim delicado escondido na minha velha gaveta, meu desenho de luz e sobriedade, ponta seca, homem-Tadeu de asa curvada sobre o fio da vida, tu mesma desenhada aos vinte, aquarela de cinza e amarelo, os pés descalços, hera colada ao muro atrás da tua cabeça, luz sobre a tua coxa direita entreaberta, porque assim logo depois do amor colocando a fivela, de ouro a tua fivela minha primeira delicadeza, a cada instante viste a minha fivela? abrindo as gavetas segurando o tufo de cabelos sobre a nuca, Tadeu, ajuda, procura a minha fivela, Tadeu, te olhava estendido na cama, tu parecias rara, muito, se não falavas. Por que, Rute, minha carne quis a tua? Mas não é a carne que pede alguma coisa, é antes a alma, eu te tocava assombrado de mim, mas não é Rute que vai alimentar o embrião-milagre, vai matá-lo, embrião-poesia-bulbo acetinado, por que a carne desejou a tua, se a alma de ti não sabia? Gostas da aquarela?       Eu não te vejo pintor muito menos poeta          Bem, mas com o tempo eu posso chegar a        Te vejo tão perfeito na liderança da empresa        Sei, mas não gostas ao menos um pouco deste traço? olha o título que coloquei, aqui quase apagado no canto da aquarela        Ah sim...   "Rute depois do gozo"... engraçado, nunca me vi assim, te lembraste de outra? nunca tive esse cabelo, nem esse rosto comprido, o olho tão redondo, não gosto quando me mostras teus desenhos, teus versos, nunca me vejo neles, é como se tu fosses outro cada vez que me mostras esboços, palavras
Meus livros tão amados, Rute, guardaste-os num lugar tão alto, era preciso uma escada tão comprida
Mas é tão harmoniosa aquela gruta suspensa para os livros, como não enxerga? imagine, até de longe tu podes reconhecer as lombadas, queres ver? Carlos Drummond de Andrade Obra Completa, Jorge de Lima, é só pedires a escada        Minha alma escurecida      Quê?       Minha alma escurecida.     Quê? Nada, que horas são?       Dez. agora já é tarde para pedires a escada.

(Hilda Hilst)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Permanência


Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

(drummond)

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Barba Ensopada de Sangue

Alguma coisa no conjunto desse instante o comove. A cachorra aparenta estar contente e pacificada pela primeira vez desde a morte de seu pai. Dália está confiando a seus cuidados o filho que ele ainda nem conhece. Talvez seja a afobação com que ela busca fincar a bandeira na vida dele, talvez ele simplesmente queira ficar sozinho e esteja dominado agora por uma carência momentânea, talvez no fundo ele não a ature, não tem um diagnóstico preciso, mas surge uma sensação muito forte de que a relação íntima que estava nascendo entre eles começou a terminar nesse instante. Preferiria estar errado. E ao mesmo tempo há uma coerência interna reconfortante na maneira como um já afetou a vida do outro de maneira irreversível, algo de bom que já se instalou e está protegido, que deverá durar mesmo que essas manhãs se interrompam hoje mesmo.

(Daniel Galera)

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

There's no smoke without fire

Se sentia uma menina. Dentro de um carro, protegida e chapada. Quando bate, você se sente destemida, não protegida. Proteção tem aura. Por isso dessa vez era diferente, admiração. Admiração e amor possuem uma relação direta, ainda indecifrável, mas ligados. Se havia admiração, talvez, a anos-luz estivesse o amor. Lombra, proteção, admiração e amor.

Abriu o biscoitinho da sorte - nem era tão menina assim. Primeiras-vezes. Perdeu a virgindade com o biscoitinho oriental que dizia qualquer coisa sobre revelações, verdades. Pensou ser do azar. Mas não. Verdade é sorte. Vida pode até ser azar, mas verdade é sorte.

Riu, riu, riu. Tudo naquele momento parecia ser cinematográfico. Talvez essas situações não têm a ver exatamente com cinema. São coisas que a mente vai guardar ~~ para sempre. Pequenas pausas na eternidade.

O biscoito abriu alas para as desgraças. Com classe, graça, pose. "Esta noite você terá grandes revelações". Abriram-se as portas da verdade. Veio empurrando tudo. Admiração, amor e, sobretudo, proteção. Não há proteção sem admiração e amor.

Biscoito spoiller do destino.


(não esquecer: http://manualdominotauro.blogspot.com.br/2013/10/hermeticus.html)


quarta-feira, 17 de julho de 2013

curitiba - dia 3

uma regra vale pra todas as cidades do mundo tenham elas tubos onde se pegar ônibus ou paradas sem ao menos uma cobertura ou um banco pra sentar: se você está atrasado e o ônibus está no ponto, corra, lola, CORRA! por causa disso, caí estatelada hoje no chão em Curitiba. tropecei e caí de joelhos. dei um grito, minha bolsa voou, meus óculos, e fiquei lá deitada na calçada. minha amiga e um homem que passava na rua vieram me ajudar e eu e ela seguimos pro Jardim Botânico em um ônibus que ainda demorou muito pra sair do tubo.

no parque (hehe, Letícia), fui lavar o joelho e a feridinha perto da barriga. uma moça viu os machucados, perguntou o que tinha acontecido e ficou se lamentando por mim. na hora de se despedir, disse: "mas não se preocupa, quando casar, sara". Pensou por uns dois segundos e completou: "se não casar, sara também!"

:)))))))

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A metáfora do coração - 2

"Mas o que primeiro sentimos na vida do coração é a sua condição de escura cavidade, de recinto hermético: víscera, entranha. O coração é o símbolo e representação máxima de todas as entranhas da vida, a entranha onde todas encontram a sua unidade definitiva e a sua nobreza. Pode-se, e a expressão popular bem o sabe, ter entranhas e não ter coração; é próprio dos seres capazes de sentir, mas sem nobreza, dos quais não se deve esperar esses momentos de ânimo que levam o selo da generosidade, que não têm as condições especiais que a metáfora do coração leva quase sempre: falta-lhes o espaço vital. Seres com entranhas sem espaço, que são um grau ínfimo na hierarquia do que é vivo. Sentem, mas no seu sentir há um absoluto hermetismo; sentem para si, e o seu sentir jamais se abre, nem sequer irradia. O coração é a víscera mais nobre porque leva consigo a imagem de um espaço, de um dentro obscuro secreto e misterioso que, em algumas ocasiões, se abre."

(Trecho do livro A metáfora do coração, María Zambrano)


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A metáfora do coração - 1

"O coração em chamas, ou o fogo do coração é a metáfora, a forma de que se revestiu nas suas aparências históricas. Mas na terminologia popular, nessa vida que o <> levou em seus fiéis territórios, o coração não é fogo, mas parece apresentar-se em símbolos espaciais: é como um espaço que dentro da pessoa se abre para acolher certas realidades. Lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis, que saltam por cima dos juízos e daquilo que pode ser explicado. É amplo e também profundo, tem um fundo de onde saem as grandes resoluções, as grandes verdades que são certezas. E às vezes, arde nele uma chama que serve de guia através de situações complicadas e difíceis, uma luz própria que permite abrir passagem onde parecia não haver passagem nenhuma; descobrir os poros da realidade quando esta se mostra fechada. Encontrar também a solução de um conflito interior quando se caiu num labirinto inextricável por obra das enredadas circunstâncias. Nesta cultura permanente do coração, não arde como fogo, mas como chama, chama que não produz dor, mas felicidade. E é luz que ilumina para sair de impossíveis dificuldades, luz suave que dá consolo. Nesta mesma cultura, o coração tem feridas; lentas, às vezes impossíveis de sarar; dir-se-ia que as feridas nele nunca se fecham porque têm um certo caráter activo, são feridas vivas, como feridas das quais mana constantemente uma gota de sangue que impede a sua cicatrização. E, por último, o coração pesa; e é pior, pode fazer sentir o seu peso, que equivale ao do universo inteiro, como se nele, pesasse a vida de alguém que, na vida, não pode já vivê-la. É o pesadume, essa palavra tão profundamente espanhola, o pesadume que provém sempre do coração".

(Trecho do livro A metáfora do Coração, María Zambrano)