sábado, 16 de agosto de 2014

Carta a D. - II

"É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca (...); ter apenas esta vida".

André Gorz; página 34

Carta a D.

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Era isso: você havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia. Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade. Você era o complemento da irrealização do real, estando eu mesmo nele compreendido desde sete ou oito anos antes, através da atividade de escrever. Você era quem punha entre parênteses esse mundo ameaçador, no qual eu era um refugiado de existência ilegítima, cujo futuro nunca ultrapassava três meses. Eu não tinha a menor vontade de voltar à Terra. Encontrava refúgio numa experiência maravilhosa e não aceitava que ela fosse alcançada pela realidade. Eu recusava, no fundo de mim mesmo, aquilo que, na ideia e na realidade do casamento, implica esse retorno ao real. Até onde consigo lembrar, eu sempre procurei não existir. Você deve ter trabalhado anos a fio até me fazer assumir minha existência. E esse trabalho, estou certo disso, nunca se completou
"

André Gorz; página 16

terça-feira, 24 de junho de 2014

Para além da curva da estrada

"
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma
"
Alberto Caeiro

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A metáfora do coração - parte 3

"Somente aquilo que constitutivamente é fechado pode ser a sede de uma intimidade; aquilo que com suprema nobreza pode abrir-se sem deixar de ser cavidade, interioridade que oferece o que era a sua força e o seu tesouro, sem se converter em superfície. Que, ao oferecer-se, não é para sair de si mesmo, mas para fazer adentrar-se nele o que vagueia fora. Interioridade aberta; passividade ativa. Tal parece ser a vida primeira do coração, víscera onde todas as restantes cifram a sua nobreza, como se nela tivessem delegado para executar essa ação suprema, delicada e infinitamente arriscada. Porque neste abrir-se da entranha coração, arrisca-se a vida das restantes que não podem fazê-lo, mas que estão comprometidas por participação. Pouco valor teria essa abertura do coração se ocorresse sem participação das demais entranhas somente passivas, obscuras e sem espaço para oferecer - pura vibração sensível, puro trabalho também -. Se tal participação não sucedesse, o coração poderia ter uma vida independente e solitária, como chega a ter o pensamento. Mas a primeira diferença que salta referente a ele, é esta de não poder desligar-se, de não andar solto, com vida independente. E levar sempre agarradas as entranhas (!!!). O que é estar e permanecer sempre e em todo o momento vivo, pois vida é esta incapacidade de um órgão desligar-se de outro, um elemento de outro; esta impossibilidade de dissociação que é tão arriscada, porque, ao não existir separação, quando chega é fatalmente a morte. Incapacidade de libertação, de viver independente e solitário que é a forma de liberdade do pensamento, que consegue assim a sua superioridade, mas sem heróismo, porque nunca arrisca, nem padece, porque ao libertar-se da vida nada tem que temer da morte"

(María Zambrano, páginas 23 e 24)