segunda-feira, 16 de março de 2015

a espera e o cão

"
Um homem chegou no dia
em que não havia espera.
Na porta, somente o cão
guardava o tempo.
E o tempo era correr
atrás do rabo.
O homem tomou o castelo,
a cama, o arco.
Agora, dorme ao meu lado
descansa da travessia.
Não sabe seu gosto de mar
não sabe que traz, na pele, a alma
do mar.
Preciso partir para esse lugar
de onde o homem voltou
(o amor, agora, é o mar).
Comecei a tecer uma rede
de pesca.
Comecei a tramar
certo corpo de barco.
Agora, tranço os cabelos
e olho pela janela.
É quando ele desperta
desfaz a cama, desfia os planos
desata a trança, pisa na rede
e sinto, de novo, o mar.
De repente, partir é igual
a ficar.
"

mônica aquino

mia couto 4

"
capítulo 21 - a chave da chuva
eis o que aprendi
nesses vales
onde se afundam os poentes:
afinal, tudo são luzes
e a gente se acende é nos outros.
a vida é um fogo
nós somos suas breves incandescências.
(fala de João Celestioso ao regressar do outro lado da montanha)
"

mia couto 3

"
- Que faz, Fulano? Não vai desfilar?
- Por quê?
- Por quê? Você não deveria estar no ensaio das comemorações?
- Para comemorar o quê?
- A independência! Ou não está feliz com a independência?
Meu pai não respondeu. Ele queria dizer que a independência que mais vale é aquela que está dentro de nós. O que apetecia celebrar era o vivermos por nosso modo e gosto. Em vez disso, porém, meu velho apenas encolheu os ombros:
- Estou feliz, sim, muito feliz.
- E então?
- Mas vou ficar aqui a fazer companhia à minha mulher. Faz anos que não assisto a um poente junto com ela.
"

mia couto 2

"
A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens. Por motivo de falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu Avô Dito Mariano.
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do meu Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu. No Avô Mariano confirmo: morto amado nunca mais para de morrer.
(...)
Fomos, pela cidade, ele um pouco à frente, com seu andar empinado mas tropeçado de salamaleques. Sempre foi assim: ao mínimo pretexto, Abstinêncio se dobrava, fazendo vénia no torto e no direito. Não é respeito, explicava ele. É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença.
(...)
De novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece mais um modo de escutar. Que seria que ela retirava de meu parente? Talvez sua definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o sofrimento é uma nudez - não se mostra aos públicos. Abstinêncio se comporta em sua melancolia. A velha coloca a mão sobre a testa, cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.
- Esse homem vai carregado de sofrimento.
- Como sabe?
- Não vê que só o pé esquerdo é que posa com vontade? Aquilo é peso no coração.
"
mia couto

meu oceano

tu é mar.
teu corpo é água, teus braços são ondas, teu cabelo é sargaço. teus olhos são estrelas, teus peitos são ouriços e tua língua é peixe, que navegam todos dentro de mim.
navegar em você é tarefa pra marinheiro experiente que domine marola e ondas grandes. mas o capitão também é você: não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.
tu é homem-mar de braçadas longas, quase inalcansáveis, mas que, vez ou outra, surpreende com nado curto, seguro, comedido.
tu é segurança.
teus braços são ondas baixas, mar parado, calmaria, aconchego, casa. mulher de olhos fechados, boiando.
mas chega também no oceano profundo e misterioso, e me leva mesmo sem saber nadar.
mulher de olhos fechados.

mia couto

"
(...)
eu tenho essa única saudade. Que caia um muitão de chuva, até chover dentro de mim, pingar-me os tetos da cabeça, me aguar o coração e eu sentir que Deus está me lavando das poeiras que a vida me sujou. E assim diluviado, eu escute, entre o ruído das gotas nos telhados, a voz de minha mãe me farolando:
- Você vem, volta...
E agora que estou falando, imagine, doutor, estou já sentindo em meus braços o doce roçar das folhinhas da planta que me protege do rebentar do peito, logo hoje que é véspera de eu ser sentenciado no suspenso da corda. Como se essa corda me conduzisse para onde minha mãe me espera, sentada na berma de um chuvisco. Como se esse nó da forca fosse o meu cordão desumbilical.
Me invente uma chuvinha, doutor...
"
mia couto.