domingo, 8 de março de 2009

O que é isso, companheiro?


Meu corpo por vezes transigia. Era preciso um despertador bem forte, para nos colocar fora da cama às cinco e meia. As noites eram passadas em discussões, leituras, às vezes em pura vagabundagem amorosa. Todos os dias, o despertador tocava à mesma hora, nem sempre o corpo se movia. Problema ideológico, dizia o assistente. Era o termo que se usava e creio que se usa ainda para analisar nossas fraquezas.
Começavam bem cedinho com aquela expressão "problema ideológico" os debates, mais ou menos monotemáticos, que fomos desenvolvendo, quase que ao longo de toda militância comum. Dorme cedo, companheiro; o carnaval é um dia como os outros, companheiro; não leia os escritores decandentes, companheiro. É verdade que aborrecia um pouco, mas sempre dentro de um clima de respeito mútuo.
Aquela geração de jovens políticos tinha uns dez anos menos que eu. Minha revolta se curtiu no triângulo familiar, nas lutas para ter os amigos que quisesse, escolher a carreira que me parecesse melhor, chegar em casa mais tarde. Eles se chocam na adolescência com um problema inédito para nós: a ditadura militar. Nos tempos de secundarista, combatíamos uma política educacional elitista, mas num quadro de um governo democrático.
Essas diferenças foram pesando muito nas formações que se defrontavam ali, diante de uma atividade comum. Para eles, tudo era política partidária. Alguns não tinham tido nem sua primeira namoradinha e já estavam inscritos numa organização. Lembro-me de Dominguinho, o mais doce e inteligente de todos, que vinha com sua sacolinha de plático, às vezes com um revólver calibre 38, às vezes um conjunto de documentos sobre o foco guerrilheiro.
- Dominguinho, por que é que você não compra um álbum e não vai colecionar figurinhas? Por que você não arranja uma namoradinha e vai acariciá-la num banco de jardim?
- O que é isso, companheiro?
(...) Daí as apreensões: eu tinha medo que, de um lado, ficassem aqueles que entendem de pessoas, e do outro aqueles que entendem de política partidária.

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trecho do livro "O que é isso, companheiro?" de Fernando Gabeira.
As reflexões ainda estão na minha mente; nas nossas, eu acho. O livro é muito bom.

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